quinta-feira, 29 de julho de 2010

Livros que já deviam estar traduzidos

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"1910 uma antologia literária"

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                               1910 uma antologia literária
           Miguel Real, Teolinda Gersão, Mário Cláudio, Luísa Costa Gomes, Urbano Tavares Rodrigues e Mário de Carvalho
                                              D Quixote

As efemérides são oportunidades para a indústria editorial faturar. A cada comemoração lá aparece uma chuve de livros sobre o tema em questão. Com o aproximar dos 100 anos da República, não faltam títulos a celebrar a data. No meio de tanta oferta há que destacar uma iniciativa louvável da D Quixote. Portugal é um país que trata muito mal o conto, daí que um volume, ainda que pequenino, de contos é sempre de louvar. Se disser que os contos estão assinados por Mário Cláudio, Luísa Costa Gomes, Mário de Carvalho ou Urbano Tavares Rodrigues, não é preciso dizer mais nada sobre a garantia de qualidade.
“1910 uma antologia literária” junta alguns dos nomes mais interessantes da literatura portuguesa e bem habituados a habitar o terreno do conto.
Cada um dos autores reinterpretou a revolução à luz dos temas e ambientes que mais trabalham nas suas obras e isso acaba por transformar este livro numa porta de entrada para as suas criações.
No “Rosto de Portugal” de Miguel Real, encontramos um D. Manuel nos momentos que antecederam o embarque no navio D. Amélia rumo ao exílio. Este é um conto que nos coloca perante a necessidade do monarca em levar um sinal de que o regresso é possível, e apresenta um dos habitas preferidos de Miguel Real, o romance histórico.
Teolinda Gersão no conto “1910” recentra a revolução na questão da emancipação da mulher. Teolinda parte deste conto para questionar a possibilidade de novos caminhos de afirmação da mulher na sociedade e na política. Já Urbano tavares Rodrigues leva-nos para o terreno da paixão. Um homem apanhado pela implantação da República nos braços da amante parte para a frente de combate às tropas leias ao rei e encontra um novo amor.
Um homem que à medida que se encanta com a jovem esposa se vai desapontando com o regime, com a política e com o rumo da história.
“1910 uma antologia literária” é uma ótima escolha para uma tarde de praia e para descobrir leituras futuras.

O escritor que não quer ser encontrado

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É muito tímido e movimenta-se nos encontros de escritores como peixe fora de água. Lourenço Mutarelli, autor de “A arte de produzir efeito sem causa” (ed. Quetzal, 2010), é, há muito, reconhecido pelos seus álbuns de banda desenhada, bem como a autoria de peças de teatro e argumentos para cinema, como “O cheiro do ralo”, meios cada vez mais alternativos e de nicho. A explosão de ideias e criatividade de Mutarelli só sai pela caneta, seja em desenho ou em texto. Esta entrevista, feita em voz baixa e muito serena,  cruza alguns dos temas mais queridos de Mutarelli, o vazio do quotidiano ou a angústia do fracasso. 
Este brasileiro de origem italiana, é um português irrepreensível.

Marechal na Reserva (MR) – A sua obra na banda desenha é pautada por atmosferas negras, depressivas, bastante duras. Este seu romance “A arte de produzir efeito sem causa” vai no mesmo sentido. Tem a certeza que, em vez de brasileiro, não é português?
Lourenço Mutarelli (LM) – Não tenho a certeza. E não tenho a certeza porque Portugal me toca de uma forma muito profunda. Estava a conversar com algumas pessoas que fui a Beja e é um local onde eu tenho que voltar. Portugal toca-me de uma forma muito profunda. Eu sou descendente de italianos e a minha mulher até já lá foi, mas eu não tenho vontade nenhuma de conhecer a Itália. Eu não tenho autoestima, é muito beixa, e eu acho que os portugueses são assim. Vocês não percebem a grandeza de vocês e dessa terra. Eu tenho uma ligação com Portugal que eu não tenho com o Brasil.

MR – É um reconhecido autor de banda desenhada, é argumentista, já participou em filmes como ator, escrever romances, ou seja, é um homem do Renascimento. Ainda assim não acredita nas suas capacidades e valor....
LM – Não, não, não acredito. Eu faço porque preciso, de alguma forma, de fazer. Eu preciso da experimentação. Quando as coisas saem há sempre um constrangimento, porque eu sei que vão julgar e não foi para isso que as fiz. Eu faço para mim. Eu não me considero um caso de fama e também não é isso que eu busco. Eu não busco nada. Eu só tento não ser encontrado. Sou o contrário da busca. 

MR - Esse acaba por ser o retrato do protagonista deste romance.
LM – É. Quando terminei o livro eu pensei que esse personagem não tinha nada que ver comigo. Mas pensando bem ele tem tudo que ver comigo. Ele rabisca papéis como eu, ele se chama júnir como eu, só não tive , felizmente, que voltar a viver em casa dos pais. Para mim essa seria a maior da derrotas, voltar para casa dos pais. Fracassar totalmente é algo comum no Brasil e infelizmente as pessoas acabam por ter de voltar para casa dos pais, já com mulher e filhos, em situações muito difíceis. Nisso eu triunfei. Aí eu tenho um certo orgulho – se calhar por causa da minha mulher e do meu filho não o fizesse – mas eu talvez preferisse ir viver para a rua a voltar para casa dos meus pais.

MR – Este romance vive na linha que separa a pobreza de uma vida remediada. Este é um romance sobre pessoas que tanto podem estar com uma vida equilibrada, como de repente caem para a pobreza.
LM – Isso tem muito a ver com a minha vida. Eu venho de uma família da classe média baixa, mas que vivia sempre com a ameaça de afundar. O meu pai era viciado em corrida de cavalos. Nós vivíamos sempre com essa ameaça de perder tudo. Embora ele tivesse hipótese de garantir uma vida equilibrada, tudo era desperdiçado. Havia uma ameça muito grande de ir lá para baixo. Eu vivia numa rua em que de um lado estava a favela e mais acima estavam as mansões, logo acabava por ter amigos dos dois lados. Já aí eu não me enquadrava. Para uns eu era uma favelado e para os outros eu era um filhinho de papai, um burguês. Quando eu casei para o bairro mais pobre da zona leste de S. Paulo. Vivia na periferia, quase numa favela. S. Paulo não tem favela propriamente dita, vai atirando as pessoas para a periferia. Eu não tenho ideário de classe alta, mas por outro lado tenho a sede de ter acesso a livros e a discos, a coisas que me alimentem a alma. Tudo o que eu conquisto, geralmente, é para isso, eu reverto para isso.

MR – O Lourenço parece-me como o escritor dos sem-voz. O escritor daqueles que não vivem nos romances assentes na cor local e no folclore, nem nos romances que abordam uma espécie de “glamour” da pobreza, da excitação da favela. Os seus personagens enchem as grandes cidades mas não costumam produzir literatura.
LM – É do que eu estou impregnado. Eu sinto muita falta de raízes. S. Paulo é uma cidade hostil com quem é de lá. Eu não tenho esse universo de Jorge Amado, para mim isso são coisas míticas. A  minha realidade é essa coisa pequena e dura que é o lugar onde você constrói o seu mundo, numa metrópole que te vai esmagando cada vez mais. Na literatura brasileira há uma coisa que me  aborrece: há pessoas que escrevem com verdade e há aquelas que escrevem porque funciona. Há pessoas que vestem uma roupagem em que eu não reconheço autenticidade e verdade. Eu procuro, no meu trabalho, falar de coisas que eu conheço, interna ou esternamente.

MR – O Brasil já tem uma literatura “favela-chic”
LM – Eu sou amigo do Ferréz, que é um cara do Capão Redondo (uma favela muito violenta no Rio de Janeiro) e escreveu o livro “Capão Pecado” (ed, Palavra, 2005). Foi um livro que estourou, com muito sucesso mesmo, logo a seguir ao do Paulo Lins, o “Cidade de Deus” (ed. Caminho, 2003), mas que acabou ficando preso do tema. Ele hoje só pode falar de favela. Eu já li textos dele muito bons que fogem disso, mas ele não consegue libertar-se desse registo por questões editoriais.

MR – Os últimos anos da presidência de Fernando Henrique Cardoso e dos dois mandatos de Lula permitiram um crescimento da classe média brasileira. Até que ponto o Brasil tem condições para responder aos anseios dessa classe média?
LM – Infelizmente, os anseios da classe média passam só pelo consumo. Eu acho que eles conseguiram foi graças a um preço muito alto. Eles conseguiram isso com base em cartões de crédito, em financiamentos bancários com prestações que eles não estão a conseguir pagar. Esse consumo é ligado à aparência. É tudo para mostrar ao outro que estão bem. O básico eles não conseguiram. As escola públicas são terríveis, os planos de saúde são caríssimos, etc. Esta meta da aparência é muito vazia. O brasil é isso. O Brasil é um presidente que diz que nunca leu um livro e com um certo orgulho. No essencial o que eles querem é o que é mais fácil, mais divertido e que impressione mais o próximo.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

O cancro permitiu-me pensar sobre a vida

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Mariela Michelena é psicalista e há uns anos atrás viu-lhe ser diagnosticado um cancro da mama. Ao longo de mais de um ano, esta espanhola de raízes venezuelanas encheu sucessivos cadernos com o relato dos dias contados. A raiva, a dor, o sofrimento estão lá todos e sem o manto delico-doce e positivo dos livros de autoajuda. Há que sofrer para a entender, bem que podia ser o lema deste relato que não deixa o leitor indiferente. Ao ler os detalhes da via sacra desta doença ficamos com uma ínfima ideia do sofrimento que ela encerra.
“À noite sonhei que tinha peito” é um diário verídico que não fala só de uma doença, fala da vida inteira. Pensar que este livro é só sobre cancro, é a mesma coisa que pensar que o cancro é só uma doença. E não é.

Marechal na Reserva (MR) - Este livro/diário tem uma carga de exposição pessoal muito grande e forte. Que força foi essa que a levou a escrever desta maneira sobre o cancro da mama de que sofreu?

Mariela Michelena (MM) – Eu crei que quando nos confrontamos com uma doença como esta, com um cancro, um cancro da mama tão agressivo, ficamos com a sensação – tal qual as pessoas que sofrem um acidente - de que toda a nossa vida passa diante dos olhos. Eu tive a sensação que a minha vida, a minha infância, as minhas relações familiares passaram diante dos meus olhos em camara lenta. Não foi rápido como um acidente, porque vivi uma doença que exigiu um período de recuperação longo. Como tal pude voltar a todas essas vivências e reecontrar-me com elas.
Efetivamente, o livro é muito intenso, até porque a doença, a recuperação e os tratamentos são intensos. Além do mais, eu sou muito intensa. O livro não podia ser de outra maneira.

MR – A sensação que tive, ao ler este livro, foi de que fala muito mais da vida, em toda a sua extensão, do que propriamente do cancro da mama. Este é um livro sobre a essência da vida?

MM – Sim. Na verdade agrada-me que tenha feito essa leitura do livro, porque às vezes fico desapontada com o facto que o leiam apenas como um diário sobre o cancro. A mim parece-me que se trata de um livro que vai para além do simples diário de um cancro. Parece-me que é um testemunho de uma vida feliz, de uma vida feita de uma infãncia recheada, de um futuro (comigo ou sem mim) e um presente importantes. A mim, parece-me que o livro vai mais longe do que a simples narração dos diagnósticos, da operação, da quimio, etc... O cancro deu-me a possibilidade de poder pensar sobre a minha vida, que é só uma vida mais.

MR – Quando recebi o livro temi que se tratasse de uma espécie de livro de autoajuda. Um mantra positivo para lidar com a doença. Este livro é o oposto desse conceito de autoajuda.

MM – Quando me diziam para pensar positivo, que não ia ser nada, eu sentia-me muito perdida. Sentia-me assim porque, efetivamente, se passava alguma coisa comigo. Estava a pensar algo muito duro, muito violento e muito feio. A minha atitude foi a exatamente oposta, foi a de enfrentar o que se estava a passar de uma forma nua e crua. Eu não fiquei deprimida durante, não fiquei deprimida depois, graças ao facto de ter vivido tudo tal qual me chegava. Não andei a olhar para as coisas através de um cristal positivo. Olhei para tudo o que me aconteceu de uma forma crua, até porque o cancro é uma coisa muito feia. Nunca o consegui entender e fiquei sempre com aquela sensação de, se acontece a uma em cada dez mulheres, porquê a mim? Podia ter tocado a outra. Fiquei com uma raiva enorme. E se há alguma coisa que retiro de positivo, deste diário, é o facto de encontrar gente que o lê e se revê naquela forma de encarar as coisas. Gente que, pela primeira vez, se diz compreendida. Gente que o dá a ler à família, para que estes entendam o que está a passar. Eu creio que não há uma só forma de viver as coisas. Eu ergo a bandeira daqueles que choram quando têm de chorar e que sofrem quando têm de sofrer.

MR – Este diário fez-me lembrar um espetáculo, “Os Produtores”, que fala de um musical que era tão, tão mau, tão mau, que acabava por ser bom. Este relato coloca as coisas de uma forma tão dura, tão dura, tão dura que acaba por ser boa e positiva.

MM – Acredito que quando fazemos uma coisa a devemos fazer bem Eu entreguei-me por completo à doença. Assim, depois dessa entrega, depois de toda a raiva, tenho agora a possibilidade de me rir também dela.

MR – Este diário é verídico, mas está escrito de uma forma tão literária que parece ficcionado. Ou seja, é um diário tão literário que custa a crer que seja real.

MM – Isso alegra-me, mas posso assegurar-te que é tudo real e está documentado nos cadernos que fui guardando ao longo da recuperação. Algumas das páginas que escrevi, nesses cadernos, t~em as marcas das lágrimas que me iam caindo. Para mim é um elogio que possas ter pensado que se tratava de uma ficção. Se há algo que não está neste livro foi porque entendi que faziam parte da minha intimidade e da intimidade que partilho com o meu marido. Tudo o resto foi escrito como está.


   

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Portugal tem muitos traços rocambolescos

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João Ferreira, editor da revista NS (parte integrante do Jornal de Notícias e Diário de Notícias), já nos tinha plantado um sorriso com o livro “Frases que Fizeram a História de Portugal”. O volume reunia frases como a famosa declaração do Almirante Américo Tomás, “é a primeira vez que estou cá desde a última vez que cá estive”. Agora a proposta vai para um conjunto de histórias, que apelidou de rocambolescas, e que servem para entender momentos que marcaram a nossa História. Do processo dos Távoras, passando pela inexistência da Escola de Sagres e terminando num governo que durou cinco minutos, há de tudo como na farmácia. Ao Fórum, João Ferreira falou  desta peripécia chamada Portugal e impossibilidade de procurar, nestes episódios, receitas para o atual estado de saúde pátrio. 


Marechal na Reserva (MR) – Como é que surgiu a ideia desta antologia de histórias inusitadas da História de Portugal?

João Ferreira (JF) – Partiu de um convite da editora Esfera dos Livros na sequência da boa aceitação de um outro livro, “Frases que Fizeram a História de Portugal”, escrito a meias com o Ferreira Fernandes.

MR – Em Portugal, durante muitos anos, o tratamento da história sempre foi visto de uma forma muito académica, muito científica. Nos últimos anos, começamos a ter livros que trabalham a história de uma forma mais acessível ao grande público, mais jornalística.

JF – Felizmente, hoje em dia, temos uma forma muito diferente de entender a leitura da história. Essa mudança já tinha começado com um grande divulgador da História de Portugal que é o professor José Hermano saraiva. Os livros dele já faziam, há mais de 25 anos, uma abordagem à História muito mais acessível. O que aconteceu foi que ele pregou no deserto durante muitos anos. Os olhos só se voltram para a História após a publicação da monumental História de Portugal do professor José Mattoso, muito embora tenha sido escrita por grandes especialistas. A verdade é que a divulgação da História tem ganho terreno nos últimos anos, muito mercê do interesse das pessoas por histórias que constam da História, mas de uma forma menos académica. O ensino acabou por tirar as pessoas da História, tirou os rostos, as caras da História. Hoje, as pessoas querem ler esses episódios históricos com os rostos de quem os viveu.Durante muito tempo era quase um pecado falar-se nos heróis da História, nos reis. Tudo isso, nos últimos tempos, tem estado a alterar-se.

MR – Ao escrever estas histórias rocambolescas, teve a preocupação de cruzar o rigor científico com uma forma mais viva e atrativa de contar os episódios?

JF – Exatamente. Eu sou jornalista e a minha função é comunicar. Quando aplico isso à História o que faço é, depois de investigar os episódios e momentos que entendo como interessantes, na extensa bibliografia que já vai existindo, apresento-as de uma forma acessível e direta, de forma a prender as pessoas à leitura. Não há aqui qualquer intenção de atingir o escalão A, B, C ou D. Eu quis chegar a toda a gente e que as pessoas pudessem apreciar a História de Portugal. Eu quis fazer um livro de divulgação.

MR – Tem crescido muito o interesse pelo romance histórico e pelos livros de divulgação histórica, acha que isso se deve ao facto de vivermos momentos de grande incerteza quanto ao Presente e ao Futuro?

JF – Este é um fenómeno que chegou já tardiamente ao nosso país. Por exemplo a biografia é um género literário que tem grande aceitação no Reino Unido, há muito tempo. Quando vemos as tabelas dos mais vendidos percebemos que a não ficção e a biografia são géneros muito respeitados. Em Portugal chegou tarde, mas chegou. No caso do romance histórico tivemos um alargamento. Há muito que temos grandes cultores do género, como o Alexandre Herculano.

MR – Não entende então que seja reflexo de um processo de auto-conhecimento?

JF – Não tenho certezas quanto a isso, mas não me custa nada a crer que as pessoas, perante uma situação, como bem descreve, de incerteza, procurem na históriua algumas respostas. Nós hoje somos aquilo que os nossos antepassados fizeram. Agora não podemos ir ao passado procurar receitas, temos de ser nós a produzir essas receitas.

MR – Olhando esta profusão de histórias que cruzam todas as épocas, fica a ideia de que somos um país bastante rocambolesco.

JF – Temos muitos traços rocambolescos. Eu procurei explicar na introdução o que se entende por rocambolesco e fiz a analogia com o personagem Rocambole, criado pelo escritor francês Pierre Ponson du Terrail, que contava histórias incríveis e fantásticas e que deu origem à palavra rocambolesco em quase todas as línguas.
Nós, em Portugal, temos um passado feitos de histórias dessas a começar pela “Peregrinação”, do Fernão Mendes Pinto. Aliás as pessoas não acreditam naquele relato e ele dizia que não tinha contado nem metade do que tinha visto. A nossa história tem de tudo, desde momentos de grande altruísmo e solidariedade de grandes e pequenos, até momentos de grande crueldade. De facto nos últimos anos tivemos alguns episódios bastante rocambolescos, desde logo a começar pela história do governo dos cinco minutos, durante a I República. Ou então, já mais perto de nós, a história do governo de Pinheiro de Azevedo que fez greve, em 1975. 

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Portugal não se trata no divã

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A psicóloga clínica Joana Amaral Dias deitou no divã um conjunto de personalidades que classificou de “Maníacos de Qualidade”. O resultado da investigação deu origem a um livro extraordinário sobre as psicopatologias de figuras como Antero de Quental, Fernando Pessoa ou João César Monteiro. Para esta ex-deputada o país não se trata no divã e a nossa grande fragilidade é uma paciência desmesurada.

Marechal na Reserva (MR) - Neste livro, a Joana assume o risco de analisar e diagnosticar várias personalidades portuguesas. Temeu a receção deste exercício?
Joana Amaral Dias (JAD) - Durante muito tempo aceitou-se a fórmula de Octávio Paz: “Os poetas não têm biografia. A sua biografia é a sua obra”. E esse pudor inibiu muitas investigações biográficas. Todavia, conhecer a vida do autor não nos arreda da sua obra. Antes pelo contrário. Embora, a minha análise psicológica e psicopatológica de João César Monteiro (ou de Fernando Pessoa e Antero de Quental) não se baseie na obra mas, sobretudo, nos documentos biográficos (cartas, diários, testemunhos), não partilho desse pavor intelectual infundido por Octávio Paz até porque vida é obra e obra é vida. Uma explica a outra. Obra transfigura a vida e vice-versa.

MR - Como é que selecionou este magnífico grupo de maníacos? Eram personalidades cuja psique já a interessavam?
JAD - Comecei por selecionar personagens cuja biografia estivesse documentada de molde a ter acesso a indícios consistentes de doença psiquiátrica. Desde logo exclui os casos em que a pesquisa não possibilitou um diagnóstico rigoroso. Em segundo lugar, procurei que o livro representasse diversas épocas históricas (o primeiro capítulo reporta-se ao séc. XXVII e o último ao séc. XXI) e diferentes quadros psicopatológicos. Cada parte do livro compreende uma vida mental e um diagnostico clínico diferente do seguinte. Todos juntos proporcionam ao leitor uma perspetiva de conjunto sobre a doença psiquiátrica.

MR - Já li que não sente uma especial proximidade por este ou aquele caso, contudo qual deles se manifestou como maior desafio profissional e intelectual. Em qual deles sentiu que estava a pisar território mais inexplorado?
JAD - Antero. Pela brutalidade, ignorância, crueldade e impotência da Medicina e Psiquiatria da época.
A análise psicológica e psicopatológica requer que nos coloquemos na cabeça do outro, debaixo da sua pele. Aliás, esse foi o maior desafio deste livro. Pensar como se fosse o outro, sentir como se fosse aquele, falar como se fosse ele. Escrever na primeira pessoa decorre desse exercício indispensável a este trabalho. Já escolher Antero para o verbalizar foi consequente a duas ordens de fatores. Primeiro, práticos. A quantidade e diversidade de registos auto-biográficos, nomeadamente epistolares, permitia-o com folga. Segundo, a própria vida mental deste açoriano, marcada pela duplicidade, fosse pelo irmão Antero morto antes do próprio nascer, fosse pela sua bipolaridade, tornava o centrar no “Eu” numa boa porta de entrada para o seu universo mental.

MR - Uma das questões que aborda, no caso César Monteiro, é a fina linha que divide a genialidade de uma qualquer patologia psíquica. São campos destrinçáveis?
JAD - Note-se que algumas das mais importantes obras desses poetas foram escritas antes da eclosão da esquizofrenia e antes do internamento e não depois.
Seja como for, se elaborar a análise psicológica e psicopatológica sem a presença do sujeito é, como digo no livro, caminhar sobre águas senão impossíveis, pelo menos traiçoeiras, supor como seria a obra de um autor caso não tivesse vivido encarcerado num desses “armazéns da desventura” é obra . O que se pode afirmar é que a doença psiquiátrica significa sempre um afunilamento das opções de pensar e sentir. A psicopatologia significa empobrecimento e limitação mental e não genialidade ou criatividade como muitas vezes, de modo preconceituoso e perigoso, se supõe. Isto é, de um modo geral, pode dizer-se que o adequado tratamento da doença psiquiátrica leva a uma vida (e, consequentemente, obra) mais completa e diversa, menos pobre e estreita.
De qualquer maneira, entre vida e arte prefiro a vida.

MR - Os casos de Antero de Quental, Ângelo de Lima e António Gancho tocam muito pela sensação de que poderiam ter vidas e obras mais longas se tivessem um melhor acompanhamento. Até que ponto sentiu alguma frustração e impotência ao pesquisar e escrever estas biografias?
JAD - É evidente que casos como Antero de Quental, cuja bipolaridade atualmente podia ser compensada prevenindo o seu suicídio macabro são pungentes. Escolher, no capítulo da Marquesa Jacóme Correia, construir um diálogo virtual com essa personagem e o testemunho auto-biográfico que legou, como se fosse uma psicoterapia (ainda que virtual e a viável neste contexto), correspondeu também à vontade de revelar ao leitor como poderia hoje ser uma resposta terapêutica. Esperemos que tenha resultado!

MR - Não esquece os tormentos passados por alguns personagens vítimas, por exemplo, de choques elétricos. A esse propósito gostava de saber como encara a polémica sobre a retirada ou não da Nobel a Egas Moniz. Como vê essa questão?
JAD - Atualmente, a lobotomia foi, felizmente proibida na maior parte dos países. Mas no inicio do século ela chegou a ser aplicada a milhares de pacientes, e ate alguns famosos como a irmã dos presidente do Jonh Kennedy (que ficou permanentemente incapacitada). Daí a retirar o premio Nobel a Egas Moniz vai uma grande distância. A historia do premio Nobel esta cheia de galardões que hoje se consideram mal atribuídos, porque conferidos às “pessoas” “erradas” ou porque não conferidos às pessoas “ certas”.Porem, mais do que esses solavancos serem intrínsecos ao Nobel, eles correspondem à própria história da ciência. O conhecimento não é algo acabado nem fechado e esta em constante revolução. Ainda bem que assim é. Certezas inabaláveis são próprias da religião e não da ciência. Egas Moniz ignorava os conhecimentos que hoje dispomos na psiquiatria, na psicologia e na neurocirurgia, e era movido numa genuína intenção de ajudar e curar pessoas com doença psiquiátrica muito grave. Claro que nada disto apaga o sofrimento cruel a que muitos lobotomizados foram sujeitos, mas duvido que a retirada do prémio Nobel resolva essa questão.

MR - Os portugueses são conhecidos por serem grandes consumidores de anti-depressivos e ansiolíticos, contudo parecem ter medo de recorrer à análise. Porque será que isso acontece?
JAD - A doença psiquiátrica sempre foi encarada de forma preconceituosa, milenarmente vista ora como possessão demoníaca, ora como toque divino. Hoje em dia, estes preconceitos vestem outras mascaras, surgem com diferentes papéis de embrulho, mas mantêm-se na sua essência. Isto é, em países menos desenvolvidos civilizacionalmente a doença psiquiátrica ´é ainda vista com vergonha e condenação social. Daí que, frequentemente as pessoas evitem recorrer à ajuda profissional, entendendo que esses serviços são apenas para loucos. È um erro. A consequência desta atitude é a que as maiorias das pessoas que acabam por pedir ajuda fazem-no já no fim da linha, volvido muito tempo após o inicio dos problemas. Ou seja, esse preconceito naturalmente dificulta o êxito terapêutico. Por outro lado, e como pergunta, recorrem à medicação, amiúde à auto-medicação, evitando um acompanhamento profissional e procurando uma prontidão na resposta que, a médio prazo se paga cara.

MR - Portugal vive em constante crise existencial. Já imaginou o país no divã do seu consultório? De que mal padece ele? E ainda será tratável?
JAD - Bom, todo o país no divã do meu consultório parece-me uma logística difícil de gerir. Falando mais a sério, julgo que os maiores problemas de Portugal são da responsabilidade dos seus governantes e não do seu povo. Basta ver, por exemplo,  como os portugueses são trabalhadores altamente produtivos quando emigram para outros países. Logo, não é a população portuguesa que provoca a crise, mas sim quem tem ocupado os mais elevados cargos da nação. E esse problema não se trata no divã (Que aliás não é magico, nem panaceia para todos os males), mas sim na política e nas urnas.

MR - Há quem admita que, enquanto nação, temos demasiada auto-consciência. Pode isso configurar algum tipo de patologia?
JAD - Acho que os portugueses não têm demasiada auto-consciência. Têm é demasiada paciência. Demoraram quase meio século a verem-se livres do salazarismo. De seguida, foram benevolentes com os seus algozes. Hoje, toleram tanto que em sondagens recentes revelavam , por exemplo, que a maioria dos portugueses acredita que Sócrates mente, mas mesmo assim votavam nele.

Transa Atlântica

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                                                                     Transa Atlântica
                                                                     Mónica Marques
                                                                     Quetzal

Se há um deficit de Portugal perante o Brasil ele não está nas alas, nem tão pouco no jogo aéreo, mas na crónica.
Terreno em que o jornalismo e a literatura se promiscuem despudoradamente, a crónica é um claro exemplo do que separa as literaturas ligadas pela mesma língua. Onde em Lobo Antunes e Gonçalo M Tavares há primado da forma, em Luis Fernando Veríssimo e Ivan Lessa há um despudor direto e simples.
É um facto que os atuais cronistas brasileiros sucedem a nomes como João do Rio, Olavo Bilac, Rubem Braga ou Nelson Rodrigues. Portugal nunca conseguiu ter a mesma fartura, pelo que Miguel Esteves Cardoso acaba por ser a exceção que confirma uma triste regra.
Mónica Marques, a viver há 10 anos no Rio de Janeiro, bebeu a tradição cronista brasileira e converteu-a num blogue e no seu primeiro romance “Transa Atlântica”.
“Os cronistas são como os bufarinheiros [vendedor ambulante], que levam dentro das suas caixas rosários e alfinetes, fazendas e botões, sabonetes e sapatos, louças e agulhas, imagens de santos e baralhos de cartas, remédios para a alma e remédios para os calos, breves e pomadas, elixires e dedais”, a definição é do escritor Olavo Bilac e assenta como uma luva à escrita e universo de Mónica Marques. Mónica abre a sua gaveta e lá encontramos postais ilustrados, um bikini e uma sunga, um recorte do Expresso e uma fita do Senhor do Bonfim, um romance do Rubem Fonseca e um CD do José Mário Branco.
A gaveta de Mónica Marques, a que ela chamou “Transa Atlântica” é essa “mistureba”, a saudável promiscuidade entre o Brasil e Portugal.
A narradora espalha o conteúdo da sua gaveta, muito parecida com a da autora e muito diferente da de Mónica Marques, e conta a sua história, as suas relações, os seus desejos, com a alegre anarquia que só uma gaveta muito desarrumada consegue providenciar.
Assim se explica que este livro, emocionalmente, nos faça subir ao Corcovado como de repente nos atire do alto da Pedra da Gávea, pois é assim que a cidade maravilhosa transforma as betas burguesas em melhores escritoras.
O Rio desempoeirou a escrita de Mónica Marques e ela agora flana, com a ligeireza de quem se sente aliviada de 800 anos de circunspeção.
“O suplício daquelas ancas balanceadoras, dos passinhos perfeitos e das bundas inacreditáveis na nossa cara de estúpidas, costumam fazer de nós mulheres muito mais humildes”, explica Mónica Marques como que retratando esse sentimento luso perante a crónica brasileira e a sua escrita

O desempoeirado charme da burguesia

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Começou por ser conhecida como autora do blogue “Sushi Leblon”, daí a ser convidada para escrever um romance foi um passo – que só Podia ser dado pelo editor e escritor Francisco José Viegas. Mónica Marques, uma betinha portuguesa a viver no Rio de Janeiro, estreou-se com “Transa Atlântica”. Sentada nas escadas de uma biblioteca, Mónica falou do bem que o Brasil lhe fez, do facto do tamanho ser importante e de como, para ela, até o medo e saudável. Sendo beta e cronista (de pessoas, relações e desejos), Mónica bem que podia passar por uma versão luso-brasileira da Carrie Bradshaw da série “Sexo e a Cidade”, não fosse o facto de ser muito mais gira do que Sarah Jessica Parker. 

Fórum (F) - Num meio literário que se leva tanto a sério e que é tão “papo-cabeça” como é que se encaixa?
Mónica Marques (MM) – Eu sei, mais ou menos, o que é o meio literário daqui, mas não me preocupo muito com isso e acho que há espaço para toda a gente. Há espaço para gente como eu, que não liga muito à solenidade da literatura. Eu venho dos blogues e tenho muito orgulho nisso. Não me preocupo muito com isso.
F – …eu colocava a questão do ponto de vista da sua forma de estar na escrita, uma postura muito desempoeirada.
MM – Tem a ver com a nossa idade. Eu cresci a ler o Miguel Esteves Cardoso, logo é natural que eu escreva como escrevo. A gente vai evoluindo. Eu tenho outras referências. É um facto que li os clássicos, mas a minha escrita está mais perto de outros registos, como as crónicas, como o Miguel. A minha escrita está mais perto de um cronismo literário que se faz no Brasil e que aqui não se faz.
F – Estará mais perto de nomes como o Ivan Lessa, Nelson Rodrigues…
MM – Sim tem razão, as minhas referências são mais essas. Tenho poucas referências portuguesas. Eu venho do jornalismo e quando cheguei ao Brasil comecei a ler os cronistas brasileiros. Eles são fantásticos, muito desempoeirados. Cá não há
Cronistas assim. O mais parecido que temos é o Miguel Esteves Cardoso. Eu peguei no que li da crónica brasileira e fiz algo de parecido. Mesmo a linguagem do blogue é muito directa. Eu não considero o que escrevo de literatura. Eu acho que e algo diferente. Não sei dizer o que é. É o resultado dessas leituras e da minha idade.
F – Sinto neste momento a literatura brasileira mais viva, mais dinâmica que a portuguesa…
MM - …e mais desempoeirada, olhe para o Rubem Fonseca. O meu sonho é poder, um dia, escrever como ele.
F – Sente que os escritores brasileiros se concentram mais em escrever uma boa história do que na forma como o vão fazer?
MM – Sim. Eles não estão cá com rodriguinhos. Por exemplo, a nível de forma aquilo que eu escrevo não tem forma. As pessoas que leram o meu livro ficam com a sensação de “o que é isto?”. É capaz de ser uma coisa nova, um caminho literário novo.
F – Porque acha que há essa diferença toda entre as duas literaturas
MM – Acho que se deve ao peso da história que nós temos e eles não. Eles não têm história nenhuma. Às vezes costumo dizer que os brasileiros são todos umas crianças, eles ainda estão a crescer. Portanto eles dão-se possibilidades que nós não nos podemos dar. O Francisco José Viegas (meu editor) disse-me: “tu não penses em fazer literatura. Tu fazes aquilo que sabes fazer bem e nós vamos encontrar um caminho”. É óbvio que os brasileiros têm uma aproximação à vida, que transparece em tudo o que escrevem, que é muito diferente da nossa.  

F – Como é que lidou com o facto de a colarem à narradora, como é que explicou que aquela voz não é a Mónica Marques?
MM – Não expliquei. Não me interessa. Cada um lê da maneira que quiser. Se quer pensar que sou eu, que pense. Se quer pensar que é outra pessoa, tudo bem. O que quero é que o livro divirta as pessoas. O importante é a história, que fala de dois países diferentes e do que faz o Brasil a uma pessoa, que já lá está há 10 anos.
F – É melhor ser humano depois destes 10 anos de Brasil?
MM – Muito melhor e aprendi muitas coisas. Aprendi a ouvir. Aprendi a ouvir as histórias das outras pessoas, não pensando naquilo que elas são. Nós, aqui, temos aquela coisa dos doutores e acabamos por não ligar a pessoas com histórias de vida interessantíssimas. O que o Brasil me deu foi isso, a capacidade de entender a diversidade. Quando saí daqui era…

F - …era mais patricinha (betinha), em Portugal, do que agora?
MM – Eu sou uma burguesa.

F – Mas o Brasil não a “desaburguesou”?
MM – Sim, na medida em que no Rio de Janeiro as pessoas conhecem-se na praia. Quando conhece uma pessoa na praia não está a olhar para o que traz vestido, para o chinelo, para nada. Portanto há uma democratização muito grande.

F – Escreve para divertir os outros, mas pressinto alguma angústia perante o processo, os prazos, os telefonemas do editor…
MM – O Francisco não faz nada disso. Há alguma angústia, mas não sou uma escritora angustiada. Escrever é um prazer, ainda que ler seja um prazer ainda maior. Há um medo saudável, não preciso de sofrer muito para escrever.

F – Olhando para o jornalismo brasileiro, por exemplo para a Revista Veja, levanta-se uma questão: porque é que este jornalismo não é possível em Portugal?
MM – Não sei. Eu acho que eles são muito melhores jornalistas, a todos os níveis, do que nós. O que vou dizer é um “achismo” meu, nós somos muito pequeninos. Isto é muito pequenino. Por isso é muito difícil aparecerem coisas novas, as pessoas não se abrem à novidade. Lá não. O Brasil é muito grande, acho que tem que ver com o tamanho dos países. Se calhar é isso que faz com que eles tenham um jornalismo mais próximo do modelo americano, do modelo de investigação. Cá não. Aqui toda a gente se conhece.
F – Há um jornalismo mais vivo, mais directo. Um jornalismo sem medo.
MM – Nem sempre foi assim. Este registo é algo novo. Eles são muito críticos, apontam o dedo. É um facto que há muita coisa a saber-se agora e capaz de ser explorada e isso ajuda.
F – Já está a escrever o próximo livro?
MM – Estou e é uma dor. Uma dor grande. Este primeiro livro foi muito bem recebido e por isso há um receio saudável em relação ao segundo.
F – É estranho que tenha sido bem recebido, já que se trata de um livro de uma estrangeirada, que escreve umas coisas muito directas e soltas sobre a vida, sexo…
MM – é incrível. Não me pergunte, não sei. Acho que deve haver um público para isto. O Francisco diz que sim. Espero que sim.

   
 

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