sexta-feira, 7 de maio de 2010

A inveja é uma merda


É uma das figuras importantes das letras brasileiras, com vasta obra no campo da reportagem e da não-ficção. A biografia de Xico Mendes, o seringueiro defensor da Amazónia assassinado por um fazendeiro, rendeu-lhe prémios e reconhecimento nacional. Em 2001, a convite de uma editora, participa da colecção Pecados Capitais, em que sete escritores foram desafiados a escrever romances sobre um pecado. Zuenir escolheu a “Inveja – O mal secreto”, agora reeditado em Portugal, pela Planeta.

Marechal na Reserva (MR) - A sua obra vive muito da reportagem, curiosamente este “Inveja” é uma espécie de híbrido entre a reportagem e a ficção. Vê o livro assim, como híbrido?
Zuenir Ventura (ZV) - É isso sim. A ideia era a de fazer uma ficção, mas quando comecei a trabalhar no livro tive muita dificuldade em encontrar personagens. Na pesquisa que ia fazendo ia percebendo que era complicado encontrar invejosos. Fala com o taxista, com o dentista e todos garantiam que não eram invejosos. Aí comecei a pensar em construir o livro também com personagens inventados, isto é, misturava realidade com ficção. Eu acho isso legal, porque instiga a curiosidade. Durante muito tempo as pessoas abordavam-me para saber se a protagonista, a Kátia, era real ou ficção. Eu respondia que sobre ela eu não falava, adensando o mistério. Agora posso dizer que a Kátia é mentira, algo que decepciona muita gente. A Kátia tem um envolvimento com o narrador, que é o autor, ou seja, eu. Então as pessoas vinham ter comigo e perguntavam como é que a minha mulher, com quem estou casado há 50 anos, tinha reagido a isso. Eu acabei por misturar a ficção com a não-ficção para tornar o livro mais rico.

MR - Este livro é o somatório de três livros. É um livro sobre a inveja na teoria, ou seja, sobre as definições do que a inveja. Um terceiro livro sobre a inveja na prática, quando conta o crime movido por sentimento em torno da Kátia. E, finalmente, um livro sobre a inveja enquanto processo, nos momentos em que descreve o cancro de que sofreu enquanto pesquisava e escrevia o livro. Concorda com esta leitura?
ZV - É interessante essa observação e eu acho que é isso mesmo. Quem também me fez essa leitura foi o Ruben Fonseca (Prémio Camões 2003), o maior romancista brasileiro. Ele também acha que o romance é composto por três livros. Eu também acho que o livro tem essas três narrativas e a estrutura assenta nisso.

MR - Sei que mesmo depois de ter editado o livro que descobriu muito mais similitudes entre a inveja e o cancro. O que têm eles em comum?
ZV - Foi para mim uma surpresa essa relação. Este livro está escrito como um making-of. Eu escrevo a forma como se foi desenvolvendo a pesquisa e o acto de o escrever. Portanto quando soube do cancro eu não pude deixar de incluir esse momento, tão importante na minha vida, no livro. Depois que incorporei essa ideia, eu apercebi-me como ambos são inconfessáveis, a inveja e o cancro, e como vão roendo, silenciosamente, por dentro.

MR - Para além da inveja, o romance vive muito da cidade do Rio de Janeiro. Apesar dos esforços feitos pelo governo Lula, o Rio continua a ser uma “cidade partida”?
ZV - É, ainda continua assim e eu espero que mude. Eu não me orgulho nada de ter criado esse titulo de “cidade partida”, mas o facto é que ela continua partida. Eu acho que ela não será tanto uma metáfora, mas antes uma metonímia do país real. Agora com a realização da Olimpíadas no Rio, eu acho que se abriu uma boa perspectiva para a cidade. Vamos ter de cumprir prazos, vamos ter de construir coisas e isso pode ajudar a tornar a cidade menos partida. Eu sei que é um processo histórico muito demorado, essa fractura foi aumentando lentamente, mas as pessoas estão muito esperançosas nesta mudança. Eu acho que não dá para não cumprir essa vontade de sarar a fractura. Vamos esperar para ver e cobrar dos governos esse objectivo.

MR - O Zuenir tem uma vasta obra e só há quatro anos foi publicado em Portugal. Muitos outros grandes escritores brasileiros e portugueses continuam sem edições nos dois países. Porque é que vivemos assim de costas voltadas, Portugal e Brasil?
ZV - Eu acho que vocês têm de ajudar a encontrar essa resposta. Eu fui criado, a minha formação toda foi feita lendo o Eça de Queiroz, Antero de Quental, Camilo Castelo Branco. Isso foi muito importante para mim. Este corte não se percebe. Há muitos escritores por publicar em Portugal e vice-versa. Mais do que andar a fazer acordos ortográficos devíamos fazer acordos de união que possibilitem que nos possamos conhecer melhor.



"A inveja é uma merda"
A expressão vem impressa num dos mais populares autocolantes usados pelos camionistas brasileiros e sintetiza o que muita gente pensa sobre o sentimento. Zuenir Ventura, quando decidiu escolher a Inveja como o pecado a trabalhar em forma de romance, para a colecção “Pecados Capitais” da editora brasileira Objectiva, não sabia no que se estava a meter. O baiano João Ubaldo Ribeiro preferiu a Luxúria, Luis Fernando Veríssimo, um bom garfo, atirou-se à Gula, mas o que podia inspirar a Inveja em Zuenir.
O livro resulta numa espécie de making-of do autor a escrever o livro. Ao longo dos capítulos vão-se misturando os esforços de pesquisa sobre o tema, a luta de Zuenir com um cancro na bexiga e a estória de Kátia, cuja disputa da atenção por dois homens termina em homicídio. O jornalista brasileiro, que abeira os 80 anos, explora o mais inconfessável dos pecados enquanto teoria, enquanto prática e enquanto processo, com uma sabedoria extraordinária. Mais de 70% dos brasileiros acham que a Inveja é o pior e o mais praticado dos pecados. Contudo pouco mais de 10% dos brasileiros assume ser invejoso. Zuenir explora esta dicotomia, entrevistando especialistas, investigando como a Inveja pode virar crime e como ela é uma espécie de cancro que toma conta, de quase toda a gente, mortal e silenciosamente.

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