segunda-feira, 2 de agosto de 2010

“Brasileiros vivem melhor mas não querem saber da cultura”

                                                                                     Foto Carol Reis

Fez a estreia, no romance, com o belíssimo “De cada amor tu herdarás só cinismo”, agora, Arthur Dapieve, acaba de editar, em Portugal, “Blackmusic”. Um dos mais respeitados críticos musicais brasileiros e colunista do Globo, Dapieve constrói o relato de um sequestro recorrendo a três estilos musicais negros, o Jazz, o rap e o funk carioca. Ao Marechal na Reserva falou do novo romance e de uma cidade partida entre pobres e ricos.
Marechal na Reserva (MR) – Como é que surgiu a ideia de contar a história de um sequestro utilizando, para isso, o fraseado de três tipos de música negra?
Arthur Dapieve (AD) – A ideia do sequestro surgiu no exacto local em que ele ocorre no romance, no dia de S. Judas Tadeu, no Rio, junto a uma igreja perto do local onde moro. Eu fiquei preso num engarrafamento e, com aquela confusão toda tipo bazar, eu pensei: “se acontecesse um sequestro aqui ninguém notaria”. Aí eu comecei a imaginar como seria esse sequestro. Regressei nos dois anos seguintes ao mesmo local, no dia da festa, para ver melhor o que eles faziam, o que comiam, portanto vários personagens foram ali observados. A ideia dos três registos nasceu no momento em que defini que o sequestrado seria um menino americano, negro, no Brasil. Esta seria uma forma de abordar, sem ser um romance de tese, a questão da raça no Brasil. O Brasil adora dizer que não tem problema com raça. Isso é uma mentira.

MR - Mas este esquema de romance como manta de depoimentos surge como?
AD - A ideia desses três registos vem do “Som e a Fúria”, do Faulkner. O primeiro personagem que aparece no livro e que não tem qualquer importância, é só um garotinho com vontade de urinar, tem o nome do Faulkner, William Cuthbert F.. O “Som e a Fúria” é construído assim, através de vários depoimentos. Como sou jornalista e escrevo muito sobre música, tinha a ideia de construir mais um romance que usasse a música para falar do Rio de Janeiro e vice-versa. E por conta da faixa etária dos personagens, todos adolescentes, para os quais a música americana é muito forte. A primeira parte é a voz de um menino americano ligado ao jazz, na segunda o rap - que não é tão forte no Rio como é em S.Paulo - cantado por um branco para  haver uma inversão, e a terceira parte uma mulata que gostasse de funk carioca.

MR – A forma como através da escrita constrói cada um dos depoimentos, segue a linha melódica de cada um dos estilos musicais. Foi propositada a harmonização da escrita com a melodia dos diferentes géneros? Por exemplo o rapaz que é raptado tem uma atitude muito cool, própria do som do Miles Davis e até a sua voz – na transição da adolescência – remete para o som do trompete.
AD – Foi sim. É mesmo assim como você descreve. Para além disso o rapaz tem uma atitude muito cartesiana. Apesar de estar numa situação absurda, ele ainda suspeita que os terroristas muçulmanos, ele descreve a situação de uma forma muito calma. O grande desafio foi mesmo fazer o rap. Ele não podia ser muito grande para não ser entediante, nem curto de mais que se tornasse insignificante. A primeira versão que fiz era muito maior e fui cortando. Eu fiz todas as experiências. Experimentei lê-lo como um rap para ver se funcionava bem e se era verosímel. Quanto ao funk carioca, o género preferido da Jô, uma das suas características é falar de sexo desabridamente. Um dia uma amiga comprou um CD pirata e mostrou-me. Eu fiquei horrorizado com o que ouvi. É de uma grosseria. É uma mulher a cantar e é um jorro. Curiosamente esta parte foi a mais fácil de fazer. Eu pensei que escrever do ponto de vista de uma mulher pudesse ser mais complicado, mas foi a parte do livro que andou mais rápido.

MR - O desbragamento do funk carioca, acaba por ter reflexo em quem ouve, ou é uma emanação de uma determinada cultura de morro?   
AD – Eu acho que é um círculo, mas para mim começa na vida. A condição de quem vive na favela é uma condição de alguma violência. A juntar a isso a falta de cômodos nas casas há muita promiscuidade. Os jovens começam a vida sexual muito cedo. Por isso eu acho que a raiz está aí. Quando o funk surgiu muita gente ficou escandalizada e dizia que isto não era música. Mas é música. Não é música que eu ouça em casa – até porque tenho crianças – mas é música. É o mesmo discurso igual ao que saudou o aparecimento do jazz, o aparecimento do rock. É uma cultura muito erotizada, em que as meninas ficam grávidas muito cedo. 

MR – O Zuenir Ventura tem um livro que fala no Rio como uma “Cidade Partida”. O fosso entre ricos e pobres continua a crescer ou já se nota uma aproximação entre esses dois mundos?
AD – É muito profunda. Nos últimos 16 anos, com a continuidade do governo Fernando Henrique Cardoso e Lula (aliás eles se detestam porque são muito parecidos), o país teve uma estabilidade económica e a crise não foi muito forte. Nesses anos a distância entre ricos e pobres diminuiu. Neste momento a classe média já é o segmento mais forte da sociedade, mas é uma classe média muito estreita. A classe média no Brasil é quem ganha entre 500 e 1500 euros, o que é muito pouco. Mas como o custo de vida não é alto, dá para as pessoas melhorarem a sua condição. Outro problema é que essa maior fluência económica não está a ser acompanhada por uma maior fluência cultural. Um dos pontos de estrangulamento económico do Brasil é a falta de qualificação da mão de obra. Há algumas empresas com vagas que não são preenchidas por falta de mão de obra qualificada. Não ficaria admirado se houvesse um novo surto de emigração, sobretudo oriundo de países da América Latina. Para quem como eu é jornalista e acompanha o panorama cultural, é muito triste ver tanta gente com dinheiro que não é capaz de comprar um livro. Aliás nem saberia sequer quem é Zuenir Ventura.

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