quinta-feira, 8 de julho de 2010

O cancro permitiu-me pensar sobre a vida

Mariela Michelena é psicalista e há uns anos atrás viu-lhe ser diagnosticado um cancro da mama. Ao longo de mais de um ano, esta espanhola de raízes venezuelanas encheu sucessivos cadernos com o relato dos dias contados. A raiva, a dor, o sofrimento estão lá todos e sem o manto delico-doce e positivo dos livros de autoajuda. Há que sofrer para a entender, bem que podia ser o lema deste relato que não deixa o leitor indiferente. Ao ler os detalhes da via sacra desta doença ficamos com uma ínfima ideia do sofrimento que ela encerra.
“À noite sonhei que tinha peito” é um diário verídico que não fala só de uma doença, fala da vida inteira. Pensar que este livro é só sobre cancro, é a mesma coisa que pensar que o cancro é só uma doença. E não é.

Marechal na Reserva (MR) - Este livro/diário tem uma carga de exposição pessoal muito grande e forte. Que força foi essa que a levou a escrever desta maneira sobre o cancro da mama de que sofreu?

Mariela Michelena (MM) – Eu crei que quando nos confrontamos com uma doença como esta, com um cancro, um cancro da mama tão agressivo, ficamos com a sensação – tal qual as pessoas que sofrem um acidente - de que toda a nossa vida passa diante dos olhos. Eu tive a sensação que a minha vida, a minha infância, as minhas relações familiares passaram diante dos meus olhos em camara lenta. Não foi rápido como um acidente, porque vivi uma doença que exigiu um período de recuperação longo. Como tal pude voltar a todas essas vivências e reecontrar-me com elas.
Efetivamente, o livro é muito intenso, até porque a doença, a recuperação e os tratamentos são intensos. Além do mais, eu sou muito intensa. O livro não podia ser de outra maneira.

MR – A sensação que tive, ao ler este livro, foi de que fala muito mais da vida, em toda a sua extensão, do que propriamente do cancro da mama. Este é um livro sobre a essência da vida?

MM – Sim. Na verdade agrada-me que tenha feito essa leitura do livro, porque às vezes fico desapontada com o facto que o leiam apenas como um diário sobre o cancro. A mim parece-me que se trata de um livro que vai para além do simples diário de um cancro. Parece-me que é um testemunho de uma vida feliz, de uma vida feita de uma infãncia recheada, de um futuro (comigo ou sem mim) e um presente importantes. A mim, parece-me que o livro vai mais longe do que a simples narração dos diagnósticos, da operação, da quimio, etc... O cancro deu-me a possibilidade de poder pensar sobre a minha vida, que é só uma vida mais.

MR – Quando recebi o livro temi que se tratasse de uma espécie de livro de autoajuda. Um mantra positivo para lidar com a doença. Este livro é o oposto desse conceito de autoajuda.

MM – Quando me diziam para pensar positivo, que não ia ser nada, eu sentia-me muito perdida. Sentia-me assim porque, efetivamente, se passava alguma coisa comigo. Estava a pensar algo muito duro, muito violento e muito feio. A minha atitude foi a exatamente oposta, foi a de enfrentar o que se estava a passar de uma forma nua e crua. Eu não fiquei deprimida durante, não fiquei deprimida depois, graças ao facto de ter vivido tudo tal qual me chegava. Não andei a olhar para as coisas através de um cristal positivo. Olhei para tudo o que me aconteceu de uma forma crua, até porque o cancro é uma coisa muito feia. Nunca o consegui entender e fiquei sempre com aquela sensação de, se acontece a uma em cada dez mulheres, porquê a mim? Podia ter tocado a outra. Fiquei com uma raiva enorme. E se há alguma coisa que retiro de positivo, deste diário, é o facto de encontrar gente que o lê e se revê naquela forma de encarar as coisas. Gente que, pela primeira vez, se diz compreendida. Gente que o dá a ler à família, para que estes entendam o que está a passar. Eu creio que não há uma só forma de viver as coisas. Eu ergo a bandeira daqueles que choram quando têm de chorar e que sofrem quando têm de sofrer.

MR – Este diário fez-me lembrar um espetáculo, “Os Produtores”, que fala de um musical que era tão, tão mau, tão mau, que acabava por ser bom. Este relato coloca as coisas de uma forma tão dura, tão dura, tão dura que acaba por ser boa e positiva.

MM – Acredito que quando fazemos uma coisa a devemos fazer bem Eu entreguei-me por completo à doença. Assim, depois dessa entrega, depois de toda a raiva, tenho agora a possibilidade de me rir também dela.

MR – Este diário é verídico, mas está escrito de uma forma tão literária que parece ficcionado. Ou seja, é um diário tão literário que custa a crer que seja real.

MM – Isso alegra-me, mas posso assegurar-te que é tudo real e está documentado nos cadernos que fui guardando ao longo da recuperação. Algumas das páginas que escrevi, nesses cadernos, t~em as marcas das lágrimas que me iam caindo. Para mim é um elogio que possas ter pensado que se tratava de uma ficção. Se há algo que não está neste livro foi porque entendi que faziam parte da minha intimidade e da intimidade que partilho com o meu marido. Tudo o resto foi escrito como está.


   

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