quinta-feira, 1 de julho de 2010

Portugal não se trata no divã



A psicóloga clínica Joana Amaral Dias deitou no divã um conjunto de personalidades que classificou de “Maníacos de Qualidade”. O resultado da investigação deu origem a um livro extraordinário sobre as psicopatologias de figuras como Antero de Quental, Fernando Pessoa ou João César Monteiro. Para esta ex-deputada o país não se trata no divã e a nossa grande fragilidade é uma paciência desmesurada.

Marechal na Reserva (MR) - Neste livro, a Joana assume o risco de analisar e diagnosticar várias personalidades portuguesas. Temeu a receção deste exercício?
Joana Amaral Dias (JAD) - Durante muito tempo aceitou-se a fórmula de Octávio Paz: “Os poetas não têm biografia. A sua biografia é a sua obra”. E esse pudor inibiu muitas investigações biográficas. Todavia, conhecer a vida do autor não nos arreda da sua obra. Antes pelo contrário. Embora, a minha análise psicológica e psicopatológica de João César Monteiro (ou de Fernando Pessoa e Antero de Quental) não se baseie na obra mas, sobretudo, nos documentos biográficos (cartas, diários, testemunhos), não partilho desse pavor intelectual infundido por Octávio Paz até porque vida é obra e obra é vida. Uma explica a outra. Obra transfigura a vida e vice-versa.

MR - Como é que selecionou este magnífico grupo de maníacos? Eram personalidades cuja psique já a interessavam?
JAD - Comecei por selecionar personagens cuja biografia estivesse documentada de molde a ter acesso a indícios consistentes de doença psiquiátrica. Desde logo exclui os casos em que a pesquisa não possibilitou um diagnóstico rigoroso. Em segundo lugar, procurei que o livro representasse diversas épocas históricas (o primeiro capítulo reporta-se ao séc. XXVII e o último ao séc. XXI) e diferentes quadros psicopatológicos. Cada parte do livro compreende uma vida mental e um diagnostico clínico diferente do seguinte. Todos juntos proporcionam ao leitor uma perspetiva de conjunto sobre a doença psiquiátrica.

MR - Já li que não sente uma especial proximidade por este ou aquele caso, contudo qual deles se manifestou como maior desafio profissional e intelectual. Em qual deles sentiu que estava a pisar território mais inexplorado?
JAD - Antero. Pela brutalidade, ignorância, crueldade e impotência da Medicina e Psiquiatria da época.
A análise psicológica e psicopatológica requer que nos coloquemos na cabeça do outro, debaixo da sua pele. Aliás, esse foi o maior desafio deste livro. Pensar como se fosse o outro, sentir como se fosse aquele, falar como se fosse ele. Escrever na primeira pessoa decorre desse exercício indispensável a este trabalho. Já escolher Antero para o verbalizar foi consequente a duas ordens de fatores. Primeiro, práticos. A quantidade e diversidade de registos auto-biográficos, nomeadamente epistolares, permitia-o com folga. Segundo, a própria vida mental deste açoriano, marcada pela duplicidade, fosse pelo irmão Antero morto antes do próprio nascer, fosse pela sua bipolaridade, tornava o centrar no “Eu” numa boa porta de entrada para o seu universo mental.

MR - Uma das questões que aborda, no caso César Monteiro, é a fina linha que divide a genialidade de uma qualquer patologia psíquica. São campos destrinçáveis?
JAD - Note-se que algumas das mais importantes obras desses poetas foram escritas antes da eclosão da esquizofrenia e antes do internamento e não depois.
Seja como for, se elaborar a análise psicológica e psicopatológica sem a presença do sujeito é, como digo no livro, caminhar sobre águas senão impossíveis, pelo menos traiçoeiras, supor como seria a obra de um autor caso não tivesse vivido encarcerado num desses “armazéns da desventura” é obra . O que se pode afirmar é que a doença psiquiátrica significa sempre um afunilamento das opções de pensar e sentir. A psicopatologia significa empobrecimento e limitação mental e não genialidade ou criatividade como muitas vezes, de modo preconceituoso e perigoso, se supõe. Isto é, de um modo geral, pode dizer-se que o adequado tratamento da doença psiquiátrica leva a uma vida (e, consequentemente, obra) mais completa e diversa, menos pobre e estreita.
De qualquer maneira, entre vida e arte prefiro a vida.

MR - Os casos de Antero de Quental, Ângelo de Lima e António Gancho tocam muito pela sensação de que poderiam ter vidas e obras mais longas se tivessem um melhor acompanhamento. Até que ponto sentiu alguma frustração e impotência ao pesquisar e escrever estas biografias?
JAD - É evidente que casos como Antero de Quental, cuja bipolaridade atualmente podia ser compensada prevenindo o seu suicídio macabro são pungentes. Escolher, no capítulo da Marquesa Jacóme Correia, construir um diálogo virtual com essa personagem e o testemunho auto-biográfico que legou, como se fosse uma psicoterapia (ainda que virtual e a viável neste contexto), correspondeu também à vontade de revelar ao leitor como poderia hoje ser uma resposta terapêutica. Esperemos que tenha resultado!

MR - Não esquece os tormentos passados por alguns personagens vítimas, por exemplo, de choques elétricos. A esse propósito gostava de saber como encara a polémica sobre a retirada ou não da Nobel a Egas Moniz. Como vê essa questão?
JAD - Atualmente, a lobotomia foi, felizmente proibida na maior parte dos países. Mas no inicio do século ela chegou a ser aplicada a milhares de pacientes, e ate alguns famosos como a irmã dos presidente do Jonh Kennedy (que ficou permanentemente incapacitada). Daí a retirar o premio Nobel a Egas Moniz vai uma grande distância. A historia do premio Nobel esta cheia de galardões que hoje se consideram mal atribuídos, porque conferidos às “pessoas” “erradas” ou porque não conferidos às pessoas “ certas”.Porem, mais do que esses solavancos serem intrínsecos ao Nobel, eles correspondem à própria história da ciência. O conhecimento não é algo acabado nem fechado e esta em constante revolução. Ainda bem que assim é. Certezas inabaláveis são próprias da religião e não da ciência. Egas Moniz ignorava os conhecimentos que hoje dispomos na psiquiatria, na psicologia e na neurocirurgia, e era movido numa genuína intenção de ajudar e curar pessoas com doença psiquiátrica muito grave. Claro que nada disto apaga o sofrimento cruel a que muitos lobotomizados foram sujeitos, mas duvido que a retirada do prémio Nobel resolva essa questão.

MR - Os portugueses são conhecidos por serem grandes consumidores de anti-depressivos e ansiolíticos, contudo parecem ter medo de recorrer à análise. Porque será que isso acontece?
JAD - A doença psiquiátrica sempre foi encarada de forma preconceituosa, milenarmente vista ora como possessão demoníaca, ora como toque divino. Hoje em dia, estes preconceitos vestem outras mascaras, surgem com diferentes papéis de embrulho, mas mantêm-se na sua essência. Isto é, em países menos desenvolvidos civilizacionalmente a doença psiquiátrica ´é ainda vista com vergonha e condenação social. Daí que, frequentemente as pessoas evitem recorrer à ajuda profissional, entendendo que esses serviços são apenas para loucos. È um erro. A consequência desta atitude é a que as maiorias das pessoas que acabam por pedir ajuda fazem-no já no fim da linha, volvido muito tempo após o inicio dos problemas. Ou seja, esse preconceito naturalmente dificulta o êxito terapêutico. Por outro lado, e como pergunta, recorrem à medicação, amiúde à auto-medicação, evitando um acompanhamento profissional e procurando uma prontidão na resposta que, a médio prazo se paga cara.

MR - Portugal vive em constante crise existencial. Já imaginou o país no divã do seu consultório? De que mal padece ele? E ainda será tratável?
JAD - Bom, todo o país no divã do meu consultório parece-me uma logística difícil de gerir. Falando mais a sério, julgo que os maiores problemas de Portugal são da responsabilidade dos seus governantes e não do seu povo. Basta ver, por exemplo,  como os portugueses são trabalhadores altamente produtivos quando emigram para outros países. Logo, não é a população portuguesa que provoca a crise, mas sim quem tem ocupado os mais elevados cargos da nação. E esse problema não se trata no divã (Que aliás não é magico, nem panaceia para todos os males), mas sim na política e nas urnas.

MR - Há quem admita que, enquanto nação, temos demasiada auto-consciência. Pode isso configurar algum tipo de patologia?
JAD - Acho que os portugueses não têm demasiada auto-consciência. Têm é demasiada paciência. Demoraram quase meio século a verem-se livres do salazarismo. De seguida, foram benevolentes com os seus algozes. Hoje, toleram tanto que em sondagens recentes revelavam , por exemplo, que a maioria dos portugueses acredita que Sócrates mente, mas mesmo assim votavam nele.

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