quinta-feira, 29 de julho de 2010

O escritor que não quer ser encontrado


É muito tímido e movimenta-se nos encontros de escritores como peixe fora de água. Lourenço Mutarelli, autor de “A arte de produzir efeito sem causa” (ed. Quetzal, 2010), é, há muito, reconhecido pelos seus álbuns de banda desenhada, bem como a autoria de peças de teatro e argumentos para cinema, como “O cheiro do ralo”, meios cada vez mais alternativos e de nicho. A explosão de ideias e criatividade de Mutarelli só sai pela caneta, seja em desenho ou em texto. Esta entrevista, feita em voz baixa e muito serena,  cruza alguns dos temas mais queridos de Mutarelli, o vazio do quotidiano ou a angústia do fracasso. 
Este brasileiro de origem italiana, é um português irrepreensível.

Marechal na Reserva (MR) – A sua obra na banda desenha é pautada por atmosferas negras, depressivas, bastante duras. Este seu romance “A arte de produzir efeito sem causa” vai no mesmo sentido. Tem a certeza que, em vez de brasileiro, não é português?
Lourenço Mutarelli (LM) – Não tenho a certeza. E não tenho a certeza porque Portugal me toca de uma forma muito profunda. Estava a conversar com algumas pessoas que fui a Beja e é um local onde eu tenho que voltar. Portugal toca-me de uma forma muito profunda. Eu sou descendente de italianos e a minha mulher até já lá foi, mas eu não tenho vontade nenhuma de conhecer a Itália. Eu não tenho autoestima, é muito beixa, e eu acho que os portugueses são assim. Vocês não percebem a grandeza de vocês e dessa terra. Eu tenho uma ligação com Portugal que eu não tenho com o Brasil.

MR – É um reconhecido autor de banda desenhada, é argumentista, já participou em filmes como ator, escrever romances, ou seja, é um homem do Renascimento. Ainda assim não acredita nas suas capacidades e valor....
LM – Não, não, não acredito. Eu faço porque preciso, de alguma forma, de fazer. Eu preciso da experimentação. Quando as coisas saem há sempre um constrangimento, porque eu sei que vão julgar e não foi para isso que as fiz. Eu faço para mim. Eu não me considero um caso de fama e também não é isso que eu busco. Eu não busco nada. Eu só tento não ser encontrado. Sou o contrário da busca. 

MR - Esse acaba por ser o retrato do protagonista deste romance.
LM – É. Quando terminei o livro eu pensei que esse personagem não tinha nada que ver comigo. Mas pensando bem ele tem tudo que ver comigo. Ele rabisca papéis como eu, ele se chama júnir como eu, só não tive , felizmente, que voltar a viver em casa dos pais. Para mim essa seria a maior da derrotas, voltar para casa dos pais. Fracassar totalmente é algo comum no Brasil e infelizmente as pessoas acabam por ter de voltar para casa dos pais, já com mulher e filhos, em situações muito difíceis. Nisso eu triunfei. Aí eu tenho um certo orgulho – se calhar por causa da minha mulher e do meu filho não o fizesse – mas eu talvez preferisse ir viver para a rua a voltar para casa dos meus pais.

MR – Este romance vive na linha que separa a pobreza de uma vida remediada. Este é um romance sobre pessoas que tanto podem estar com uma vida equilibrada, como de repente caem para a pobreza.
LM – Isso tem muito a ver com a minha vida. Eu venho de uma família da classe média baixa, mas que vivia sempre com a ameaça de afundar. O meu pai era viciado em corrida de cavalos. Nós vivíamos sempre com essa ameaça de perder tudo. Embora ele tivesse hipótese de garantir uma vida equilibrada, tudo era desperdiçado. Havia uma ameça muito grande de ir lá para baixo. Eu vivia numa rua em que de um lado estava a favela e mais acima estavam as mansões, logo acabava por ter amigos dos dois lados. Já aí eu não me enquadrava. Para uns eu era uma favelado e para os outros eu era um filhinho de papai, um burguês. Quando eu casei para o bairro mais pobre da zona leste de S. Paulo. Vivia na periferia, quase numa favela. S. Paulo não tem favela propriamente dita, vai atirando as pessoas para a periferia. Eu não tenho ideário de classe alta, mas por outro lado tenho a sede de ter acesso a livros e a discos, a coisas que me alimentem a alma. Tudo o que eu conquisto, geralmente, é para isso, eu reverto para isso.

MR – O Lourenço parece-me como o escritor dos sem-voz. O escritor daqueles que não vivem nos romances assentes na cor local e no folclore, nem nos romances que abordam uma espécie de “glamour” da pobreza, da excitação da favela. Os seus personagens enchem as grandes cidades mas não costumam produzir literatura.
LM – É do que eu estou impregnado. Eu sinto muita falta de raízes. S. Paulo é uma cidade hostil com quem é de lá. Eu não tenho esse universo de Jorge Amado, para mim isso são coisas míticas. A  minha realidade é essa coisa pequena e dura que é o lugar onde você constrói o seu mundo, numa metrópole que te vai esmagando cada vez mais. Na literatura brasileira há uma coisa que me  aborrece: há pessoas que escrevem com verdade e há aquelas que escrevem porque funciona. Há pessoas que vestem uma roupagem em que eu não reconheço autenticidade e verdade. Eu procuro, no meu trabalho, falar de coisas que eu conheço, interna ou esternamente.

MR – O Brasil já tem uma literatura “favela-chic”
LM – Eu sou amigo do Ferréz, que é um cara do Capão Redondo (uma favela muito violenta no Rio de Janeiro) e escreveu o livro “Capão Pecado” (ed, Palavra, 2005). Foi um livro que estourou, com muito sucesso mesmo, logo a seguir ao do Paulo Lins, o “Cidade de Deus” (ed. Caminho, 2003), mas que acabou ficando preso do tema. Ele hoje só pode falar de favela. Eu já li textos dele muito bons que fogem disso, mas ele não consegue libertar-se desse registo por questões editoriais.

MR – Os últimos anos da presidência de Fernando Henrique Cardoso e dos dois mandatos de Lula permitiram um crescimento da classe média brasileira. Até que ponto o Brasil tem condições para responder aos anseios dessa classe média?
LM – Infelizmente, os anseios da classe média passam só pelo consumo. Eu acho que eles conseguiram foi graças a um preço muito alto. Eles conseguiram isso com base em cartões de crédito, em financiamentos bancários com prestações que eles não estão a conseguir pagar. Esse consumo é ligado à aparência. É tudo para mostrar ao outro que estão bem. O básico eles não conseguiram. As escola públicas são terríveis, os planos de saúde são caríssimos, etc. Esta meta da aparência é muito vazia. O brasil é isso. O Brasil é um presidente que diz que nunca leu um livro e com um certo orgulho. No essencial o que eles querem é o que é mais fácil, mais divertido e que impressione mais o próximo.

0 comentários:

Enviar um comentário

 

Marechal na reserva © 2010

Blogger Templates by Splashy Templates